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quarta-feira, dezembro 31, 2003


Até para o ano.





terça-feira, dezembro 30, 2003


Sismos


Aqui, no Earthquake Hazard Program podemos observar a actividade sísmica mundial nos últimos 30 dias e, por exemplo, descobrir que dia 10 de Dezembro a terra “abanou” três vezes aqui em território luso. Uns meros 2,9. Coisa pouca.

Aqui, as medidas, para o antes e o depois, que sugere a cruz vermelha, onde podemos até encontrar um livro para as crianças aprenderem enquanto se divertem.






Mas porquê?


Aconselho-vos um local na rede para que, em 2004, todos os pais (e não só), não se atrapalhem e confundam com os porquês dos pequenitos. O motor do automóvel da mamã; os brinquedos que brilham no escuro; a tuvisão; os sonhos e pesadelos; e muito mais.
Tudo aqui, onde podemos descobrir como as coisas funcionam.

Um bom ponto de partida é a actualidade: Como funcionam os sismos?






A Dois?


Manuel Falcão, o director do novo canal de servilismo público, afirmou, em entrevista (daquelas pequenas, género bibelô) à Grande Reportagem, que detesta quando: ‹‹Percebo que não consigo mudar o que queria.››
Tenham medo. Tenham muito medo.






Intuição feminina


Enquanto nos deslumbrávamos, mais uma vez, que nunca são demais, com um dos filmes mencionados no post anterior, a minha esposa lança uma questão certeira: - Como é possível que actores nascidos no século XIX, fossem melhores que a maior parte dos nossos do século XXI?

Maravilhoso sexto sentido, esse, da flor que eu amo.





segunda-feira, dezembro 29, 2003


Insubstituíveis, a bom preço


A partir desde mesmo dia, em que aqui largo as minhas palavras cibernéticas, sinto-me uma pessoa mais completa e, embora todos esperem o relato de uma acção maravilhosa ou de uma edificação inigualável, tal sentimento foi despoletado por um acto de consumo. Três digital versatile discs, cada um adquirido pela módica (uma vez que o conteúdo é abismal) quantia de 20 euros cada – Modern Times; The Great Dictator; Monsieur Verdoux. Três obras maiores que o próprio cinema, quem sabe, maiores que o próprio autor. Quem desconhece, não devia, deve, conhecer. Quem pode, coloque na estante, não como mostruário, mas como enciclopédias que se consultam várias vezes por ano. Quanto tudo bate certo, quando tudo parece desmoronar-se. É que ter isto - é o mesmo que ter tudo.


Serve ainda este post, para mais um pequeno apelo ao consumo. Uma das maiores surpresas cinematográficas de 2001 e, infelizmente, um filme quase condenado ao esquecimento. Uma história tocante sobre a procura do próprio eu, sobre equilíbrios, aspirações e revelações. Na fnac, a 9 euros, antes que acabe. Senhoras e Senhores, A Origem do Amor.






No dia em que o noticiário tremeu


Ontem, enquanto punha as noticias em dia, Pacheco Pereira alertou-me para ter medo, ter muito medo. Tentei recordar os cabeçalhos dos últimos dias e como não me recordava de nenhum documentário português intitulado “Dominó na IP5”, esperei pelo resto do aviso. O blogger mais mediático falava de terramotos e entendia que deveríamos andar todos abalados com a ideia (mais que provável, e eu concordo) da terra “mexer” em Lisboa. Perguntava-me a minha mulher: ok, já estou com medo. E agora, fico aqui com medo? – E JPP prontamente explicou que a razão de provocar medo é despertar os lisboetas e fazê-los agir. Agir como? Pedir esclarecimentos e informarmo-nos acerca de: quais as zonas de mais risco; o cumprimento, ou não, das normas de segurança na construção de edifícios, as medidas a tomar na ocorrência de um sismo; entre outras. Agradeço a preocupação do comentador. Mas mais agradecia se ele cumprisse também o seu papel, aproveitando os meios mediáticos de que dispõe para enunciar o que ele próprio sabe. Porque, por exemplo, afirmou saber quais as zonas mais perigosas, mas quando incitado a nomeá-las “desviou-se” pela existência de mapas e relatórios que, mesmo que disponíveis para consulta, acabam por estar muito “escondidos” do cidadão comum. Venho então, por este meio, pedir que nos esclareça. Mesmo sabendo que é perigoso para uma figura com tanta audiência causar especulações imobiliárias e outros problemas, penso também que acaba por ter uma obrigação moral para com os mesmos cidadãos que acabou de “avisar”.






Prémios?


Não irei divulgar nenhuma lista dos melhores blogs de 2003, embora o tenha feito com os preferíveis posts. A razão prende-se não só por respeito pelos blogs que habitam a minha coluna da direita (sem intenções politicas nesta denominação), e por uma questão de coerência: a colocar um na lista de melhores, comprometia colocar todos. No entanto não desanimem. Para 2004 está já em preparação a segunda edição dos Bloscares – os prémios mais absurdos da blogosfera. Este ano os bloscares deixam de ser em Agosto para serem colocados no próprio dia dos Óscares do cinema, de modo a fazer sombra, e com o objectivo de retirar toda a audiência do Kodak Theatre. As maiores agências publicitárias, a nível mundial, já preparam as suas candidaturas ao poster do evento, o conteúdo dos blogs de 2003 já foi enviado aos 500 membros da academia, e por toda a imprensa e forums já principiou o debate. Isto promete.





domingo, dezembro 28, 2003


Três em 2003


Como já mencionei em posts anteriores, uma das maiores admirações que 2003 me trouxe foi a blogosfera. Ao longo de vários meses, os blogs proporcionaram-me momentos de: descoberta, gozo, aprendizagem, emoção, atrito, náusea, harmonia, enternecimento, concordância, sorrisos sentidos, gargalhadas imprevistas, risos irónicos. Decidi então, em jeito de balanço, apresentar aqui, três textos que constituem um bom exemplo desta variedade de conteúdos. São textos de blogs “mediáticos”, mas não procuro menção nos ditos “blogs” por “re-postar” as suas palavras. Muitos outros locais escreveram momentos dignos de referência. Estes foram apenas alguns que me agradaram tanto que acabei por arquivar. Para todos vocês, aqui vão, três de 2003:

Um amigo de Nuno Costa Santos
‹‹Perguntam-me por que é que eu mantenho uma ligação tão forte com a minha terra e eu respondo: os amigos. E acrescento: os amigos do meu pai. E ainda faço uma precisão: os amigos de infância do meu pai. Os poucos a quem, apesar de não partilharmos o mesmo sangue, tratarei sempre por tios - e que me ensinaram quase tudo o que sei e sinto sobre a amizade. O meu pai e eles não se viam diariamente. Direi até: nem mesmo com regularidade. Mas, sempre que se encontravam, não circulava entre eles o ar espesso e pesado da distância. Não havia artificialismos nem conversas de ocasião. Em pequeno, costumava juntar o meu incipiente vulto ao deles – alinhava, ainda de madrugada, nas caçadas e pescarias, acompanhava-os na altura das visitas às casas uns dos outros, quase sempre sem necessidade de avisos prévios, e ouvia as suas histórias de juventude, com namoros, motas e Beatles à mistura. Mais tarde, sobretudo quando passei da adolescência à idade adulta, transferiram algum do afecto que sentiam pelo meu pai para mim – começaram também a tratar-me como amigo, um dos chegados. Há uns anos, andava eu em apuros comigo e com o mundo, um deles apanhou-me numa festa de casamento, agarrou no meu braço e levou-me para um passeio. A certa altura, falou-me num tom ao mesmo tempo triste e apaziguado: “Aquilo que o teu pai te tem dito sobre o curso e sobre a vida, em geral... Olha que ele tem razão...”. Nessa altura, o tamanho da barriga e a cor amarelenta dos olhos denunciavam-no como estando muito doente – um ano depois veio mesmo a morrer, em circunstâncias trágicas que não interessa aqui recordar. Não segui o seu conselho, mas ainda hoje sinto que aquela conversa foi uma espécie de missão, uma missão de amizade, um gesto que gostaria de, um dia, poder ter com os filhos dos meus melhores amigos. ››


Blogs, não-blogs de Francisco José Viegas

‹‹O pior que poderia acontecer aos blogs, além de elaborarmos códigos de conduta, seria determo-nos mais tempo do que o necessário nas razões que levam alguns bloggers a «encerrarem actividade». É provável que existam blogs que não resistam ao Verão ou que só existam porque há Verão, e disponibilidade, e vontade de falar. Isso dura enquanto dura. A natureza do blog é profundamente individualista — mesmo quando abriga vários individualismos. Acabam como começam, temos pena ou não, mas sabemos que ressuscitarão por aí, se ressuscitarem. O impulso que leva alguns bloggers a iniciarem actividade é precisamente o mesmo que os leva a «encerrar actividade». Alguns esgotam os seus objectivos. Alguns, outros, cansaram-se, e estão no seu direito. Outros mudam de rosto e não nos apercebemos (sim, sim). Têm uma marca de exibicionismo e de intimidade, de clarividência e de lugar-comum, de banalidade e de excepção. Tudo isso é natural. Que o Pedro, primeiro, tenha querido acabar com o Guerra e Pás e que o outro Pedro quisesse, depois, interromper o Flor de Obsessão é natural — porque as razões até estão lá inscritas (talvez mais no Guerra e Pás ). Mas nada disso é dramático. Tudo isso estava escrito e inscrito, como disse.
Prevejo, de facto, que boa parte dos blogs acabem por estes dias, quando acabar o Verão, quando a vida ganhar «outro sentido» ou for necessário «regressar à vidinha». Um blog não é «um meio de comunicação social». O seu carácter flutuante diz-nos que «viver sempre também cansa», que há coisas que nascem da imensa harmonia do mundo, e que há outras que vêm do fundo da tempestade. Não interessa. Temos de ser tolerantes para com a própria natureza do blog, que é essa: existe enquanto existe.
Não sei quando acabará o Aviz . Vou escrevendo, tenho a noção de que escrever num blog é uma coisa precária (não tenho contador, não quero, não caio em tentação, não — claramente, não — acho que um blog tenha «audiência», talvez tirando o Abrupto ), que somos voyeurs e objectos de voyeurismo em simultâneo. Mas há coisas que se dizem através dos blogs e há coisas que não digo através dos blogs. O que escrevo noutros lados não me impede de escrever o que escrevo no Aviz , mas não penso muito nisso. Não roubo tempo «ao outro lado» para escrever neste; nem roubo tempo «a este lado» para escrever no outro. Cada coisa — cada suporte — tem a sua natureza, mesmo que não a saiba identificar. No Aviz escrevo sobre a noite, sobre a insónia, sobre a minha fé e as minhas saudades, sobre política, sobre o que quiser, sem me importar com a opinião de Luís Delgado. Não tenho a ideia de uma «utilidade» dos textos; acho que há textos dos blogs que têm dignidade suficiente para serem publicadas em livro, numa revista, numa página de jornal; e há colunas de jornal que nunca deixaria que se publicassem no meu blog, porque nenhum preço paga aquela mediocridade, aqueles erros de gramática ou aquela falta de ideias. O mundo é um mistério, não é?
Acho que é por isso mesmo (por o mundo ser um mistério) que tenho um blog. Discuto com quem quero (e só com quem quero), discuto até onde quero (e só até onde quero), no registo mais «disponível» por que se possa optar. Provavelmente por ser assinado e se tratar de um blog público não é tão confessional como seria um «diário pessoal». Mas mesmo o carácter confessional da escrita, como se diz no Norte, «vai da pessoa». Muitas vezes, o Aviz é um texto único contra a noite, contra a insónia, contra os mosquitos que vêm com o Verão. E vai com a música que estou a ouvir.
Na generalidade, inclusive, penso que há blogs muito interessantes com que aprendi bastante — sobre literatura, sobre filosofia, sobre política. Com outros, irrito-me em silêncio porque prolongam aqui a ignorância que se detecta nas «conversas de circunstância», reproduzindo erros e omissões da imprensa generalista ou da mais alinhada. Mas por isso mesmo defendo a inexistência de qualquer código de conduta senão aquele que deriva do bom-senso — que é uma coisa muito pessoal. Desconfio daqueles que vêm educar as massas e arrebanhar multidões (acho o proselitismo muito discutível). Desconfio ainda mais daqueles que se vêem investidos da missão de «acordar consciências» para pôr toda a gente a discutir e a «debater». Aqui deixamos o que queremos e só somos julgados por isso. Acho bem que existam blogs que citem, citem, citem, que exponham as suas paixões e que escondam os seus amores. Tudo se nota, quando é escrito. Escrever profundamente é mostrar os lugares da paixão (a paixão, a divergência, o ressentimento, o amor, a delicadeza, a tranquilidade), mas só quando se quer. Muitas vezes é só insónia. Só perguntas: e a noite, o que é? — por exemplo.
Fazer de um blog mais do que isso já me parece extravagância.››



Uma frase de Pedro Mexia

‹‹eu não me queixo de nada. Detesto queixas. Quando não me agrada alguma coisa, não costumo recorrer à queixa mas à ironia (por isso é que sou de direita, e não de esquerda)››





sábado, dezembro 27, 2003


Fechar o Natal em beleza


Aqui.





segunda-feira, dezembro 22, 2003


Estes dois contos, são o meu presente de Natal para todos vós. Obrigado a todos os blogs pelos momentos bem passados neste ano.

FELIZ NATAL







A última semana antes do Natal


Estava quase na hora de fechar. O Sr. Américo passou o pano do pó pelo confortável, mas gasto, cadeirão de pele preta. Não havia mais clientes para atender. Assim como todos os outros dias, numa das últimas barbearias de Lisboa. Os clientes habituais partiram para o reino das almas, e só velho amigo Ventura ainda ali passa diariamente, para falar dos resultados desportivos, e lamentar outros tempos. Ventura, o velho careca, até a barba lhe faz a assistente social. Mas é uma boa companhia. Um jovem casal de namorados sorri ao olhar pelo vidro, comentando como tem graça aquela barbearia. – Tem graça que nunca entrem – pensou Américo. Preferem os grandes e novos salões, cobertos de posters anunciando novos penteados e a última moda em gel. Ali, na barbearia Sequeira, os únicos posters estão gastos. Um Cary Grant de assinatura comida, um calendário das baterias Tudor que parou no tempo, e uma antiga promoção do Restaurador Olex. Américo preparava-se para fechar, talvez para sempre.
- Aguente-se até ao Natal homem – aconselhava-lhe o velho Ventura
- O Natal é como outro dia qualquer – respondia-lhe sempre Américo.
Américo retirou a bata. Preparava-se para apagar as luzes quando entrou um senhor forte com uma longa barba branca.
- Vai fechar? – perguntou o homem
- Ora essa. Ainda se atende mais um – brincou Américo, animado mais por ter companhia do que por ter um cliente.
O homem sentou-se no cadeirão, com um ar bem-disposto.
- Então, é para dar um acerto no cabelo? – perguntou Américo, enquanto colocava uma bata em redor do grande pescoço do homem.
- Olhe que não. Decidi livrar-me desta grande barba.
- Tem a certeza?
- Absoluta. Não passará de hoje.
Américo iniciou a árdua tarefa que se impunha. Já metade da barba se encontrava espalhada pela madeira do chão quando o homem forte mudou o tema de conversa, até aquele momento, baseado na decisão de se livrar de tão farta barba.
- Então lá temos mais um Natal há porta. – lembrou o homem.
- É apenas mais um. Um dia como os outros – respondeu melancolicamente o barbeiro.
- Apenas mais um? – indignou-se o homem – Natal é sempre bem-vindo. O único dia do ano em que as pessoas se amam e respeitam. Só por isso, é sempre bom haver Natal.
- Isso era dantes. Agora é mais um dia a ver a televisão. Lá passa um bom filme de vez em quando. – corrigiu Américo.
- Então e a família? O convívio? O conforto acolhedor das pessoas que se juntam?
- Eu já não tenho quem se me junte – desabafou Américo.
O homem forte olhou o barbeiro pelo espelho, sentia-lhe o olhar triste camuflado pela mestria com que aparava o que restava da barba.
- Ora aí está, até parece outro. – comentou Américo ao terminar o trabalho.
O homem observou o seu reflexo e levantou-se com um acenar de cabeça aprovador. Pagou a Américo e deixou-lhe um gorjeta acima da média. Cumprimentou-o e partiu. Américo limpou a barbearia, desligou as luzes, e partiu para casa.

O dia seguinte seria apenas mais um mas, para grande espanto de Américo, o homem voltou a aparecer, com a barba de novo crescida, branca, e farta.
- Não diga nada homem – apressou-se logo o cliente – Isto está relacionado com as hormonas. Foi sempre assim. Vamos mas é lá outra vez cortar.
Américo, ainda confuso, lá desempenhou a sua função. E no dia seguinte, e no outro, e no outro. Todos os dias, antes do sol se pôr, lá tornava o homem, com a sua longa barba, e após cada corte retribuía sempre acima do normal. Até que na véspera de Natal, finalizado mais um corte, o homem perguntou ao barbeiro: - Então esta semana acabou por correr bem?
- Olhe, com as barbas todas que lhe fiz, a semana pagou-se tanto como um mês.
- Ora aí está uma boa notícia. Mas olhe que agora tem de retribuir.
- Diga lá então. Cliente tão fiel manda! – brincou Américo.
- Prometa-me então uma coisa. Pega em algum deste dinheiro extra que ganhou, e hoje à noite prepara uma boa refeição de Natal para duas pessoas. – ordenou o homem.
- Isso é estragar comida meu bom amigo. – avisou o barbeiro.
- Não me faça uma desfeita dessas. Olhe que nunca se sabe, nunca se sabe.
- Faço, mas porque o senhor tem sido um óptimo cliente. Vai ver no entanto que se estraga. Um desperdício! – tornou a avisar Américo.
O homem levantou-se sorridente e, com um forte aperto de mão, despediu-se.
- Um santo Natal para si meu bom amigo – desejou o homem
- Um santo Natal – retribuiu o barbeiro
Nessa noite, Américo cumpriu o prometido. Preparou uma farta ementa de Natal, abriu uma garrafa de bom tinto, e colocou a mesa para dois. Sabia que jantaria sozinho, mas sentiu-se bem ao manter-se ocupado com um objectivo. Sentou-se, colocou o guardanapo ao peito, e preparava-se para iniciar o seu manjar Natalício quando ouviu um riso vindo das escadas.
- Ho Ho Ho! – ecoava no edifício
Depois alguém bateu à porta.





domingo, dezembro 21, 2003


Conto de Natal


Era véspera de Natal. Nas enormes rotundas interiores, forradas a vidro, enfeites e promoções, as pessoas circulavam como formigas num carreiro. Centenas de filas, caminhos, entradas e saídas, onde as vozes, os passos, e o lambuzar das máquinas registadoras, se misturavam com cânticos de Natal em versão remix.
O senhor Abílio embora já lhe doesse o corpo, mantinha-se sentado no grande cadeirão forrado de veludo vermelho e verde, com uma criança de olhos brilhantes no colo que lhe contava timidamente como tinha sido o seu ano enquanto brincava com a longa barba branca de Abílio. Recebeu uma mão cheia de doces e correu para a mãe que sorria enternecida. Com aquela ternura de quem quer voltar a criança. De voltar a sentar no colo do Pai Natal. Abílio soltou a sua gargalhada natalícia, forte mas acolhedora, e incentivou mais um pequeno a aproximar-se. Era um menino louro, muito bem penteado, trajado a rigor para as compras do Natal. Ouviu os últimos conselhos do pai e dirigiu-se para o colo do senhor que é conhecido por dar presentes.
- Então como te chamas tu, meu pequenote – perguntou alegremente Abílio
- Benardo – respondeu envergonhada a criança, ao que o pai, sorrindo, corrigiu – Bernardo.
- Então e tu portaste-te bem este ano?
- Sim.
- E foste bom para os outros meninos?
- Sim.
- E o que quer o Bernardo pedir ao Pai Natal?
Bernardo que olhava para baixo, levantou finalmente os olhos para Abílio – o pião mágico que dá na televisão que eu gosto muito ...
- Bernardo. Não te estás a esquecer de nada? – perguntou o pai.
Bernardo olhou confuso para o pai, mostrando alguns sinais de nervosismo. Bernardo tentava adivinhar o que seria, apenas formulando meias palavras.
- Gostava que os meninos do mundo … - ajudou o pai.
- Sim. Não tivessem fome, e que não há as guerras, e todos os meninos vão ter presentes do Natal. – respondeu Bernardo, enquanto o pai sorria orgulhoso.
Abílio olhou para o pai de Bernardo, e assim ficou observando as suas reacções. Bernardo, impaciente, começou a balouçar as pernas.
- Muito bem. E queres então um pião não é? – indagou Abílio, lembrando-se do pequeno.
- Sim. O pião que faz barulhos … e o action men que anda na água … e o carro dele .. e …e… o o jogo do cão para a televisão… e o filme dos peixes e .. e… o pião.
Abílio sorriu e retirou uma mão-cheia de chupas coloridos da sacola que ofereceu a Bernardo. Bernardo desceu do colo e foi dar a mão ao pai enquanto olhava os doces.
- O que se diz Bernardo? – lembrou o pai
- Obrigado – respondeu a criança sem tirar os olhos dos doces
O pai voltou a sorrir orgulhoso e quando se preparavam para partir, Abílio chamou.
- Ho, Ho, Ho, então e o pai não quer pedir nada ao Pai Natal?
- Não … eu já tenho tudo. – respondeu embaraçado o pai de Bernardo, enquanto tentava esboçar um sorriso e olhava para as pessoas à sua volta.
Abílio ficou apenas a olhar novamente o pai de Bernardo que se afastava com o pequenote insistindo para que este guardasse os doces no saco. Uma lágrima correu pelo rosto de Abílio.
- Feliz Natal – sussurrou para si mesmo – Feliz Natal.





sexta-feira, dezembro 19, 2003


A interrupção


A maneira como o aborto é tratado pelos partidos portugueses quase que me concede justificação moral para pegar em todos os políticos e colocá-los diariamente em voos da YES até que a estatística prove as suas regras. A abordagem, eu defendo, eu condeno, como se de uma clubite se tratasse é, no mínimo, sinistra. O aborto é uma questão muito complicada ao nível pessoal que pode até levar uma pessoa a reflectir meses seguidos sem chegar a conclusão alguma, como no meu caso. Realmente choca-me que uma mulher possa ser condenada e colocada lado a lado com criminosas devido a uma interrupção voluntária da gravidez. Mas, por outro lado, independentemente do progenitor ou das futuras condições de vida previstas para uma criança, uma vida é sempre uma vida. E a interrupção voluntária da gravidez é a morte de uma vida. Não sei se já se pode considerar um individuo, nem quero entrar nesse debate, mas que é uma vida não há dúvida. Existe um ponto fundamental nesta questão e que é, por si só, responsável pela grande dúvida que me assola neste assunto: Um feto com uma, duas, ou três semanas, não só já é, como possui centenas ou mesmo milhares de variáveis, possibilidades, ou destinos, daquilo que poderá vir a ser. Não se trata de direitos, trata-se de direito. Conclusão: não consigo ainda tomar uma posição, pois sou contra a interrupção de uma forma de vida, mas também me choca o problema do aborto clandestino (mais dos problemas a nível de saúde que colocam as mulheres em risco, do que o facto de poderem ser condenadas à prisão). Agora, para tomar exemplos, o PCP dizer que é a favor, o PP dizer que é contra, mais se assemelha a uma reunião de condóminos discutindo a inclusão ou não de portões automáticos no prédio. Novo referendo talvez seja necessário. Mas eu gostava de ver um referendo sem campanhas, sem bandeiras, nem autocolantes para por ao peito. Sabemos todos aquilo que temos de votar, não nos digam porquê, nem se coloquem em circos mediáticos para jornal ver. Criticam o último referendo. Acusam os portugueses de ir para a praia em vez de votar. Não meus senhores, a maior parte dos portugueses não soube foi decidir. Porque a decisão é difícil. Coloca cada um de nós numa das maiores lutas interiores que um tema pode causar.





quinta-feira, dezembro 18, 2003


Aviso


O conteúdo do penúltimo post é puramente ficcionado. Nenhum animal sofreu, nem a sua integridade física foi, alguma vez, posta em causa. Se há animal que sofre neste blog, sou eu, o que não constitui problema, pois a PETA não morre de amores por mim. Aliás, vice-versa.





quarta-feira, dezembro 17, 2003


Incertezas coloridas


Não necessito de preferências politicas, nem de andar mais num lado que outro, para constatar algo curioso que a blogosfera me ensinou nestes meses. Aqueles que escrevem mais à direita mudam frequentemente de opinião quando constatam que estão errados. Aqueles mais à esquerda mantêm constantemente uma casmurrice deveras curiosa, até quando se apercebem do erro. Sendo eu um traste a nível de história politica, alguém que me explique: isto é novidade ou reincidência?





terça-feira, dezembro 16, 2003


Instruções para o final do dia


Pede-se o especial favor de juntar a família, amigos, e colegas de trabalho. Depois abraçam-se (colocar o braço por cima do ombro do próximo), movimentar o corpo para a esquerda e para a direita com pequenas subidas, e cantar em uníssono.









Shame on me


Deixei passar a febre, o diz que disse, e mais uma vez provou-se que a pergunta – ainda não? Como é possível? – não causa nenhum efeito em especial na minha pessoa. Depois do “shame on you” de Moore na entrega dos óscares, não estava muito inclinado para conhecer a sua última obra documental. Sou sincero, ainda não conhecia nada do senhor em questão. Mas como algum dia teria que acontecer, Bowling for Columbine passou no meu leitor de dvd. Eu esperava demagogia e anti-americanismo (vindo de dentro) espalhado, a torto e a direito, e a intenção em todo o documentário de apontar um dedo acusador e fácil. Enganei-me redondamente. Esta obra é uma das melhores peças documentais que já vi. Moore procura o problema com sinceridade, deixa-se guiar pelas várias causas que atravessam o seu caminho, parte com um guião para cedo se aperceber que apenas deve deixar-se levar. Não fossem as muitas prendas que tenho de comprar este natal, e eu iria oferecer gentilmente três cópias deste dvd. Uma ao correio da manhã. Uma ao 24 horas. Uma à tvi.





segunda-feira, dezembro 15, 2003


Instinto ou inteligência?


Aviso desde já para o conteúdo desagradável deste post. Hoje, ao ver uma mãe sovar violenta e repetidamente uma criança de 6 anos apenas porque esta estava a andar devagar, apeteceu-me, infelizmente, bater numa mulher. Consegui controlar-me e, embora saiba que foi a decisão acertada, ficou a remoer no estômago a revolta e a raiva. Creio que, por vezes, as palavras não conseguem explicar o conceito de diferentes graus de força e estrutura física. Sentimos por vezes a necessidade de dar uma lição. Nunca o faço usando a violência. Mas garanto-vos que, hoje, a dúvida permaneceu no ar.





domingo, dezembro 14, 2003


Obrigado


Ao blog destas meninas que, ultimamente, posta as melhores imagens que tenho encontrado na blogosfera.






Entrem, fiquem, sejam bem-vindos


A paragem do blog, durante um espaço de um mês, trouxe-me uma agradável surpresa: as leitoras e os leitores. Este blog, na altura em que parou, era ponto de passagem de uma média de 150 pessoas por dia, facto que ainda hoje me confunde. Metade destas pessoas ficam automaticamente excluídas: São procuras no Google, embora me agrade que em 60% destas pesquisas seja a palavra “amor” o alvo pretendido. Provavelmente, 25 dos restantes são dirigidos por outros blogs que gentilmente me “linkaram” na coluna da direita. Sobram 50 pessoas que diariamente vêm consultar a origem. Porquê? Essa é a minha pergunta.

Sei que escrevo mal. Não me refiro a problemas de utilização do português, embora acredite que tal aconteça com frequência (existe um link neste blog para me avisarem destes erros e prezo quem o usa). Escrevo mal, porque falta-me o treino. Comecei a escrever com uma frequência regular apenas há 5 meses e, uma vez que acredito possuir um gosto apurado no que respeita à qualidade literária, não me considero um exemplo a ter em conta.

Não sou figura predominante em nenhuma área em geral. Sabemos todos que há quem fique “linkado” no primeiro dia de blogger apenas pelo nome. Não condeno. Não posso, nem ninguém pode. Sei muito bem que fui colocado no Desejo Casar por conhecer o Nuno e por risos sinceros trocados no passado. Disse-me que a origem tinha qualidade. Eu, sempre com dúvidas em relação ao que faço, torço o nariz. Mas se for apenas pelos sorrisos, chega-me perfeitamente.

O conteúdo. Talvez seja o que faz as pessoas voltarem. Falo de amor, de pessoas, de belezas e sentimentos. Sei que sou muitas vezes demagógico, quem sabe, até lamechas. Não consigo, nem quero, evitá-lo. Como dizia o filme “I have love to give, I just don´t know how”. Queria contar o meu amor à humanidade (porque ainda acredito), e não o sei fazer pela música, pelo cinema, pela literatura, ou por outro meio. Faço-o fisicamente com amigos, conhecidos, animal de estimação, família e mulher. No entanto, parece sempre que ainda há mais. Que ainda sobra algum. Tento utilizá-lo aqui. Quem sabe, apenas precise de atenção.

A surpresa do fecho do blog, foi as leitoras e os leitores que pela primeira vez me escreveram. Pediam que não partisse, agradeciam os textos, desabafavam sentimentos que nos eram comuns, contavam histórias, e até me ensinaram música clássica como o fez a Cristina. Apercebi-me que muitos aqui procuravam algo. Não escreviam antes. Encontravam-se naquele lugar de silêncio, onde a ausência de palavras funciona mais eficazmente que o melhor texto alguma vez escrito. Voltei por mim, e voltei por eles. Porque preciso de atenção, porque eles também. Apenas vos peço. Continuem a escrever e não esperem apenas o momento em que possa voltar a partir. Como diz o título: Entrem, fiquem, sejam bem-vindos.

Tinhas razão Rui. There´s (really) no place like home.






Não fui eu, foi ele


Saddam capturado, é o assunto de hoje e, provavelmente, das próximas semanas. Lá fui ler os artigos online de vários jornais, passear pelos blogs com agenda, e até rever este ou aquele escrito mais biográfico sobre o homem com medo – o do próprio e o dos outros. Esse medo da morte que obcecava Saddam, deixará para sempre no ar uma questão: Foram os americanos que o capturaram, ou foi ele que deixou de fugir? Uma coisa é certa: Saddam hoje dormirá descansado e o mundo também. Observando as reacções na rádio e nos blogs sobre a captura, entendo também mais uma vez a razão de eu não ter cor. É que ter cor, em Portugal, é sinónimo de birra, e essa fase, no meu caso, encontra-se enterrada num passado longínquo. Saddam vai preso, e todos querem levar a bicicleta.





quinta-feira, dezembro 11, 2003


Tendências da nova estação


Durante a minha pausa blogosférica descobri que este Clint não é, afinal, aquele Eastwood. Como dizia o anúncio, falta-lhe um bocadinho assim para estar ao lado dos meus preferidos Scorsese, Forman, e Kaufman.
Mas descobri também que a Pixar é sempre Pixar. Venha o inverno.






Home Actually


Quis o destino que hoje fosse buscar o meu pai ao aeroporto. Enquanto esperava, sentado na mesa de um café, lembrei-me do filme Love Actually ao observar os sorrisos, o amor, a alegria de quem chega, ao encontrar alguém que espera. Foi nesse mesmo momento que descobri uma emoção ainda mais tocante. Viajantes solitários que, ao verem Lisboa lá fora, tão perto atrás daqueles grandes vidros, não conseguem evitar o sorriso e o brilho nos olhos. Aproveitamos a mínima oportunidade para falar mal de Portugal, mas quando os nossos pés tocam a terra que nos viu nascer, emocionamo-nos, sentimos aquele calor estranho e acolhedor que não se explica com palavras. Sente-se, em todos os poros.

Os antigos ensinaram-nos que “bom filho à casa torna”. Lembrei-me então que “velhos são os trapos”.






Cinco minutos de fama


Aquelas senhoras idosas que fazem questão de se queixar de todas as mazelas no organismo, e que soltam esplêndidos jogos de palavras, tais como “ando muito afanada”, são apenas seres humanos três gerações à frente do Bigbrother, dos vox pop televisivos, e dos blogs.






Uma conversa de café na capa de um jornal


Tenho de dar razão aos blogs que classificam como demagógico o artigo do Independente sobre o estado do cinema Português. O artigo é, sem surpresa, um puro exercício de demagogia. Sem surpresa, pois aos poucos habituamo-nos a que a discussão do tema resvale frequentemente para a análise TVI. O que o Independente faz é igual a assistir à Manuela Moura Guedes com espasmos faciais enquanto avisa quase em lágrimas: - o dinheiro para este filme a negro servia para os medicamentos que a Dona Susete tanto precisa ! – Chego a tentar prever o dia em que a TVI finalmente irá utilizar a palavra, coitadinho, em rodapé.
O Independente limita-se a atirar cabeçalhos sensacionalistas e, embora os tente camuflar de informação à população, a polvilhar malícia e a apontar o seu dedo birrento. O problema do marketing e promoção, talvez um dos grandes causadores do insucesso, é referido numa frase rápida. Demagógico, porque fácil. Demagógico, porque não vai além duma conversa de café. Demagógico, porque analisar a fundo o problema implica meses de pesquisa jornalística. Demagógico, porque é o Independente. O Independente trabalha a arte de camuflar a demagogia, da mesma forma que o Expresso o faz com o sensacionalismo. Temos semanários à altura do pais. Apenas para citar um exemplo, 600 mil euros é realmente muito pouco dinheiro para uma longa-metragem. Numa das fases finais da obra cinematográfica, a pós produção áudio, o dinheiro escasseia. Entra-se no jogo do “estica”. E o som acaba por não ter, nem pode (já chega de favores e trabalhar por “tuta” e meia), a arte final que necessitava. Mau som, denuncia o filme ao espectador. Ele apercebe-se do som gravado. E se ao vermos um filme apercebermo-nos que está a ser filmado, gravado, ou ficcionado, somos automaticamente atirados para fora do filme. O filme morre naquele momento e dificilmente poderá corrigir o erro. Este é apenas um problema no meio de dezenas de outros entraves. Apresentar números de bilheteira, é pura demagogia. Para isso vou tomar uma bica à cinemateca ou à escola superior de teatro e cinema. Quem sabe, um dia, a Grande Reportagem pegue neste assunto. Então, talvez. Talvez.





terça-feira, dezembro 09, 2003


Olha o puto a cantar de galo…


Venho por este meio apresentar as minhas sinceras desculpas a todas(os) representantes de blogs mencionados na coluna da direita. A todos enfiei o barrete. Garanto-vos que foi por uma boa causa e que, devido a doença prolongada do técnico multimédia deste blog, a situação só poderá ser corrigida depois dos reis.






Pareciam bandos de pardais à solta


Felizmente estive de fora neste mês em que a blogosfera publicava testes a torto e a direito.
Cheguei a temer o aparecimento de testes ao tamanho do pénis intelectus.






Eu e o tigre


É curioso que o episódio que aqui relato de seguida tenha ocorrido há cinco meses, e que não consiga distinguir se ocorreu há muito ou pouco tempo. Os bons acontecimentos parecem sempre já esquecidos num passado longínquo, mesmo que ocorridos há uma semana, e por seu lado os maus acontecimentos “foram ontem”, talvez uma tentativa do nosso cérebro em não serem esquecidos, a aprendizagem do filhote urso que coloca o focinho na colmeia. Talvez o episódio seja um misto de positivo e negativo. Talvez.
Há cinco meses, numa revista, li um artigo sobre um novo ecossistema, diferente de qualquer um já visitado, onde as leis da sobrevivência se demarcam de qualquer outro ponto no planeta. Nesse ecossistema, as tentativas de caça dos predadores mais temidos saiam quase sempre goradas. A presa ria-se do predador e a linha, em que os papéis se podiam inverter, era ténue e fraca. Um vortex natural onde tudo existia como antes mas em que nada era realmente o que parecia à primeira vista. Onde até se decidia quando morrer, quando partir, sozinho, ou em bando.

Visitei esse admirável mundo novo. As espécies que já conhecia, e até algumas que nunca vira, tornavam-se diferentes. As gazelas saltavam mais alto que nunca, os pássaros coloridos mudavam constantemente de cor, e até os abutres que voavam nos seus temíveis círculos mortais sabiam que dificilmente alguma vez poderiam saborear carne.
Foi então que o vi. Aqueles belos olhos amêndoa. As listas negras sobre o laranja. O andar arqueado e sedutor. Aquele tigre fascinava-me. Todos os felinos de grande porte sempre me fascinavam, mas este, este convidava-me a levá-lo ao colo como uma cria. Tão impressionante porte de possibilidades e no entanto a doçura e a meiguice de uma cria. Sentei-me ao seu lado, do outro lado das grades, e esperei que a habituação à presença presenteasse os seus frutos.

Consegui enfim tocar-lhe. Ele rosnou-me meigamente, lambeu-me a mão, aninhou-se junto a mim. As grades já não existiam. Humano e felino em perfeita harmonia.
Aos poucos tornamo-nos inseparáveis. Eu explicava-lhe quem era, ele convidava-me cada vez mais a entrar no seu habitat onde, embriagado pelos estranhos e novos sons e odores, me deixei guiar pela sua cauda hipnotizante. As pessoas aproximavam-se e gabavam a beleza do animal, o sentimento espelhado nos seus grandes olhos, as emoções que este lhes provocava. Aos poucos tornou-se vaidoso. Queria atenção e mimo a todas as horas, e eu sentia-me já demasiado preso a ele. A sua dependência tornou-se a minha clausura. Aos poucos afastei-me, para que entendesse que, embora estivesse sempre a seu lado quando fosse necessário, também eu precisava de viver, correr e caçar. Não gostou. Mostrou as garras e soltou um rugido ameaçador. Ali, nesse momento, se quebrou o elo entre nós. O belo gato tornava-se num tigre perigoso, e eu sentia um ataque à minha jugular iminente. Fechei novamente a grade.

Fugi. Corri o mais que podia, dias e dias sem parar, até que aos poucos me esqueci do antigo amigo. Os amigos no entanto não se esquecem, apenas se afastam momentaneamente. Voltei ao seu encontro. Estava magro e tinha fome, e os olhos amêndoa choravam de vergonha pelo passado. Afaguei-lhe a cabeça. Ele olhou-me nos olhos e colocou-me a pata em cima da perna. Conhecia-o há cinco meses. Resolvi hoje voltar ao seu habitat que ele agora compreende ser dos dois. Mais uma tentativa. Sabemos hoje qual o território de cada um, e entendemos que os seus limites são para respeitar. Só assim poderemos sobreviver. Ambos.








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